Here be dragons

O povo pelo povo e o RS acaba em menos de seis meses

A direita, os anarcocapitalistas (embora este termo seja discutível) e a extrema-direita brasileira, diante do crime ambiental praticado no Rio Grande do Sul, conseguiram emplacar uma bela história: o povo pelo povo.

É muito importante salientar como o povo brasileiro se uniu para ajudar o povo do Rio Grande do Sul. É reconfortante observar que o próprio povo, especialmente os mais pobres, uniu-se no próprio RS para ajudar os outros. Voluntários que não têm muito em casa saem às 5h para atender 12h em um abrigo onde as pessoas perderam tudo. Isso é significativo, especialmente após o período de 2018 a 2023, em que o Brasil parecia uma poça de sangue (e ainda parece, em certa medida), pois mostra que o povo ainda é solidário, mesmo que precise de uma tragédia para uni-los.

O problema é que a direita liberal (o anarcocapitalismo clássico), responsável pelo crime na figura do próprio Sebastião Melo e do governador Eduardo Leite, entrou em "contenção de danos" nos últimos dias. Quem se lembra dos primeiros dias de enchente, quando o método de operação era mais simples e conhecido, com boatos desde a ideia de que a PRF estava multando caminhões e impedindo a entrada de mantimentos no RS, até montagens de helicópteros da Havan (que nem existem naquele modelo) realizando resgates cinematográficos em meio a águas lamacentas. O grande problema desse tipo de montagem é que ela é facilmente desmentida e, no final, com o crime em curso, não estava convencendo além daqueles 10% de sempre.

Assim surge a nova versão da propaganda da direita. Talvez comece com Eduardo Leite agradecendo a Elon Musk por 100 (!) antenas da Starlink enviadas para o estado. A gênese do movimento não é tão importante no momento. O que importa é o objetivo da nova estratégia individualista dessa parcela política do Brasil. A ideia de "o povo pelo povo" nasce da necessidade de diminuir o papel do Estado como provedor de infraestrutura, promovendo a ideia de que o povo se organiza melhor sem a intervenção estatal (mesmo que o povo não tenha como organizar financiamento, construção de cidades provisórias, linhas de crédito, suspensão de empréstimos, etc.). Essa realidade hiperindividual é o que sedimenta o pensamento neoliberal/neocon, iniciado nos anos 80 com o Thatcherismo e o Reaganomics (pesquisem sobre o que foi feito em Detroit, Liverpool e Flint; é esclarecedor sobre o pensamento neocon).

O povo pelo povo é um slogan que visa destruir o que resta de rede de sustentação social no Brasil. Não porque os liberais acreditem que esta seja a melhor estratégia para o povo. Pelo contrário, o liberal, acima de tudo, tem consciência de classe e sabe que a melhor forma de dominar o povo - o trabalhador - é justamente criar uma cisão entre eles. O povo pelo povo é um movimento de enfraquecimento do próprio povo através do enfraquecimento daquilo que os mantém capazes de produzir e ajudar. Sem CLT, sem MVMC, sem BF; sem qualquer desses auxílios do Estado, a maioria estaria incapaz de ajudar as pessoas que hoje mais precisam. A rede de sustentação social é o que permite que um trabalhador tenha suas faltas abonadas em tempos de calamidade, que ele saque o saldo do seu FGTS, que ele trabalhe em prol da sociedade por dias. Não é o dono da empresa, o capitalismo ou a "livre relação de emprego" presente na plataformização da economia. É o bom e velho Estado de bem-estar social que permite que as pessoas sejam humanas e as livra do peso de se preocupar 100% com a comida e o aluguel do dia seguinte.

Os liberais sabem disso, e é por isso que querem que o Estado seja o menor possível (na medida certa para ajudar apenas eles). O povo pelo povo passa pelo Estado pelo povo.


Update: no mesmo dia, saiu a entrevista mais medonha que um governador poderia dar depois de um crime desse calibre.

Eu reproduzo um comentário que eu acabei de fazer no blog Manual do Usuário.

É tudo um pouco. Dizem que a ideia de modificar o Guaíba de rio para lago tem relação com a legislação ambiental mas frouxa que o lago tem para construção nas suas margens e, por consequência, a aderência dessa legislação com as construções da nova orla. Não sei o quanto isso é verdade, mas o Guaíba tem característica dos dois tipos de corpos hidricos (pelo que eu me lembro das minhas aulas da escola).

O Eduardo Leite foi responsável por grande parte da nova legislação ambiental para os corpos hidricos do estado. Ele também é o governador que menos investiu na defesa civil do estado. Ontem o Guilherme Felitti ainda postou um trecho da entrevista dele para a Folha de São Paullo onde ele diz:

Estudos alertaram, mas governo também vive outras agendas.

Se essa é a atitude correta de um governador de um estado que sempre teve problemas com cheia e que está em um região complicada em termos de mudanças climáticas, a gente está muito perdido. E nem é no longo prazo.

A entrevsta dele é esclarevedora sobre como o neoliberalismo pensa a pauta ambiental. Vale a pena: 'Estudos alertaram, mas governo também vive outras agendas', diz Eduardo Leite sobre falta de plano para conter cheias no RS.