Here be dragons

O que nos rodeia

Eu gosto de pegar comentários que eu levo mais tempo escrevendo e, por isso mesmo, explico mais a minha cabeça/ideia e republicar no meu blog e/ou Medium para não perder o pensamento.

Esse comentário ocorreu no Manual do Usuário, dia 22/07/2024 no Órbita, comunidade do blog, em resposta à provocação de um usuário.

O post começa assim:

outro dia eu me deparei com uma discussão absurdamente patética nas redes sociais a respeito da virtude filantrópica de bruce wayne. não, não era uma discussão sobre os aspectos narrativos, sobre a maneira como o personagem é representado, sobre seus rebatimentos e reverberações ideológicas, sobre questões formais (como edição, corte, enquadramento, traço, etc), sobre a performance promovida em cada suporte, etc. Tudo isso seria válido. Mas… não: estavam discutindo se o sujeito é ou não uma boa pessoa.

Abaixo o comentário.

Você vai ter que dar vários passos pra trás – no tempo – para começar e entender porque esse tipo de coisa ainda ocorre. E pior, ocorre com mais frequência.

Primeiro de tudo, o pessoal que hoje consome esse tipo de mídia é, em sua grande maioria, uma massa infantilizada de pessoas de classe média (sim, precisamos generalizar porque não podemos tratar de todos os recortes de classe) que exarcebam essa infantilização para política e para o meio social. Por isso a ideia de “polarização” é tão querida à essas pessoas.

Pegando esse gancho. Os personagens que estão sendo postos por você são rasos (ou planos) no sentido de serem escritos com base no que o Edgar Alan Poe criou (e que se convenciona como teoria do conto clássico) e que se caracteriza por personagem que não evoluem (ou que evoluem muito pouco) e reviravoltar no enredo que mantém o leitor preso na narrativa. É uma história acontecendo, os pesonagens são bem delimitados, as narrativas são delimitadas (existem os mocinhos e os vilões) e todas as ações são em prol de uma narrativa bem delimitada do que é correto e do que não é correto (dentro das regras criadas por essa própria narrativa). Extrapola isso pra vida real e você tem uma boa analogia com a polarização política e com o fenômeno do coach/vendedor de cursos (delimitar ações sociais, criar inimigos e definir quem é bom e quem é malvado com base em uma lógica criada internamente por essa narrativa).

Puxando outro fio desse novelo: vivemos uma época (hoje em dia e nos últimos 15 anos) que criou um mercado consumidor ao redor de uma persona de ultra-consumo que compra bonecos, revistas, camisetas, pelúcias e tudo o que estiver relacionado com essa cultura (e esse não é essencialmente o problema, mas é um dos) que foi amplificado por uma questão transmidia (podcasts, televisão, YouTube, cinema, literatura, quadrinhos e música) que foi sendo martelada dia após dia em todo o centro ocidental (EUA e UE) e seus raios (américa latina, principalmente) que foram criando uma grande quantidade de pessoas que iniciou essa caminhada de consumo aos 15/20 anos e está hoje eom 30/35 anos mantendo os hábitos de consumo e mantendo a leitura artística (não é de graça que livros de fantasia vendem tando com sagas enormes e histórias cada vez mais maniqueístas) rasa que se transpõe para a vida e para as relações. Como você mesmo disse abaixo, representatividade importa, mas nas mãos dessas empresas e servido como alimento para o consumo desse público, não serve de nada, senão para mercantilização da opressão (cinema sem luta de classes e sem consciência de classe).

Atente-se, finalmente, ao fato de que o Brasil – e o capitalismo – mantém a sua base social com uma educação utilitarista – a mesma educação que diz que não precisa de faculdade ou que reclama que a faculdade de TI não ensina a última linguagem de programação, diga-se – que não tem tempo para se debruçar sobre questões sociais e profundas sobre a arte – seja por qual meio/suporte – porque precisa preparar os alunos para ENEM e trabalhos práticos de mão-de-obra barata (e não tem problema nisso, mas tem problema quando toda a educação é baseada nesse mesmo cenário de gerar mais e mais pessoas pra alimentar um sistema/setor sem questionar e apenas trabalhar 80h por semana (alienação da mercadoria que chama né?)) e é inundada por um processo de cobrança e mudança constantes (de espaços físico, de turma, de pessoas, de tomadores de decisão escolar etc).

Em resumo: você tem um contínuo de 20 anos (pelo menos) de uma construção de uma público-alvo sem capacidade de questionar a composição e a criação das obras que consome e treinado para apenas consumir a obra e o que se cria ao redor dessa obra. Não é interessante que se questiona ou discuta como algo é feito, porque algo é feito e as moralidades desse algo quando se quer criar, vender e consumir em escala.

Isso é expansível para redes sociais, trabalho, escola, esportes e tudo o que nos rodeia.